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NINA HORTA
A nem tão "dolce vita" dos críticos
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Acabou com a comida de rua. Poderia parecer esnobismo, mas é cada vez mais difícil encontrar coisa que preste
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DOMINGO, COMO queria assistir ao programa de TV do Josimar Melo, postei-me em frente ao canal NatGeo, 33 na Net, duas horas antes das oito da noite, rente como pão quente, como se fosse ver o papa. Assisti primeiro a um daqueles programas de um grupo estressado, andando pelos desertos à procura do grão-de-bico selvagem. Acharam. E, aí, quando se pensa que vai entrar "O Guia", que é o nome do programa, entram os chimpanzés e tartarugas em extinção. Horrendos. E biscoitos de lama. Ufa, depois disso, qualquer comida que aparecer vai ser um luxo.
E, às oito horas, não mais que de repente, Josimar Melo, o nosso Josimar, invade Paris, fazendo um tour pelas ruas, feliz da vida! Pena que aconteceu comigo uma coisa imprevisível. Não consegui me distanciar e assistir ao programa como se assistisse a um crítico qualquer, a um programa qualquer. Para mim, era o Josimar Melo, o meu amigo, que conheci muito antes de ser companheiro de Folha. Eu queria que o programa desse certo, que todo mundo gostasse. E já vi como é difícil ser crítico envolvido, assistindo a um amigo, e não como um telespectador descompromissado.
Por falar em crítica, ele foi direto para os escritórios do "Michelin" conversar com um bambambã muito engomado, com um colarinho que lhe cobria o queixo. Comparou ironicamente o seu pequeno guia com o calhamaço "Michelin" e bateu um papo solto com o cara importante. Bom, ali já estávamos entendidos, o Josimar é um crítico que, sem preconceitos colonialistas, inteligente, arguto, sarcástico, vai nos dar sua perspectiva das comilanças de mundo afora.
Nessa França, acabou com a comida de rua, comeu churrasco grego (de frango!), cuspiu, crepes, cuspiu, pão de chocolate, cuspiu. Poderia parecer esnobismo, mas o pior é que não é, cada dia fica mais difícil encontrar coisa que preste na rua. Depois de tantas intempéries, bebeu um Calvados triplo para limpar o paladar e enfrentar o luxo que viria no dia seguinte.
A edição do programa é boa, mas um tanto quanto ágil, "puladinha", tentando abarcar o mundo com as pernas, como soem ser os programas modernos, e a voz em off, lendo informações, é dispensável. O conhecimento oferecido ali foge do telespectador nem bem o programa acaba. Achei que poderíamos ter menos Josimar de fundo, lendo o que acontecia, e sim passando a informação cara a cara, coisa de que ele é muito capaz.
Eu não precisava do ratinho do "Ratatouille", com o qual implico solenemente. Primeiro, todos os programas de comida do mundo eram ilustrados com Babette. Agora, lá vem o rato. E prefiro o Josimar ao vivo do que o rato. Fica registrada a queixa.
Acompanhamos o passeio à melhor baguete, em Montmartre, muito bom, e culminamos com Alain Passard que também falou, e bem, sobre a crítica construtiva e a necessidade dela. Está chegando a hora da comilança. Josimar vai comer uns risotinhos de legumes do Passard, mas de legumes mesmo, sem arroz. Todos cortados em quadradinhos e feitos como risoto. E um menu degustação no Ducasse, com seu célebre purê de couve-flor. Frango de Bresse com trufas, lagostins com caviar, enfim, o que há de mais fino, delicado, equilibrado e saboroso.
No fim, deu para entender que é um programa vivo e inteligente, que está delineando um personagem interessante, capaz de conversar com gregos e troianos e, além disso, saber comer. E o personagem é irônico, não fala da comida com a seriedade de quem vai salvar o Ocidente, mas sim de pratos, lugares e chefs que se esforçam para nos dar prazer. Tudo se encerrou com o crítico nu, na banheira de torneiras douradas do hotel. Uma gozação da dolce vita dos críticos gastronômicos.
ninahorta@uol.com.br
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NINA HORTA
A nem tão "dolce vita" dos críticos
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Acabou com a comida de rua. Poderia parecer esnobismo, mas é cada vez mais difícil encontrar coisa que preste
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DOMINGO, COMO queria assistir ao programa de TV do Josimar Melo, postei-me em frente ao canal NatGeo, 33 na Net, duas horas antes das oito da noite, rente como pão quente, como se fosse ver o papa. Assisti primeiro a um daqueles programas de um grupo estressado, andando pelos desertos à procura do grão-de-bico selvagem. Acharam. E, aí, quando se pensa que vai entrar "O Guia", que é o nome do programa, entram os chimpanzés e tartarugas em extinção. Horrendos. E biscoitos de lama. Ufa, depois disso, qualquer comida que aparecer vai ser um luxo.
E, às oito horas, não mais que de repente, Josimar Melo, o nosso Josimar, invade Paris, fazendo um tour pelas ruas, feliz da vida! Pena que aconteceu comigo uma coisa imprevisível. Não consegui me distanciar e assistir ao programa como se assistisse a um crítico qualquer, a um programa qualquer. Para mim, era o Josimar Melo, o meu amigo, que conheci muito antes de ser companheiro de Folha. Eu queria que o programa desse certo, que todo mundo gostasse. E já vi como é difícil ser crítico envolvido, assistindo a um amigo, e não como um telespectador descompromissado.
Por falar em crítica, ele foi direto para os escritórios do "Michelin" conversar com um bambambã muito engomado, com um colarinho que lhe cobria o queixo. Comparou ironicamente o seu pequeno guia com o calhamaço "Michelin" e bateu um papo solto com o cara importante. Bom, ali já estávamos entendidos, o Josimar é um crítico que, sem preconceitos colonialistas, inteligente, arguto, sarcástico, vai nos dar sua perspectiva das comilanças de mundo afora.
Nessa França, acabou com a comida de rua, comeu churrasco grego (de frango!), cuspiu, crepes, cuspiu, pão de chocolate, cuspiu. Poderia parecer esnobismo, mas o pior é que não é, cada dia fica mais difícil encontrar coisa que preste na rua. Depois de tantas intempéries, bebeu um Calvados triplo para limpar o paladar e enfrentar o luxo que viria no dia seguinte.
A edição do programa é boa, mas um tanto quanto ágil, "puladinha", tentando abarcar o mundo com as pernas, como soem ser os programas modernos, e a voz em off, lendo informações, é dispensável. O conhecimento oferecido ali foge do telespectador nem bem o programa acaba. Achei que poderíamos ter menos Josimar de fundo, lendo o que acontecia, e sim passando a informação cara a cara, coisa de que ele é muito capaz.
Eu não precisava do ratinho do "Ratatouille", com o qual implico solenemente. Primeiro, todos os programas de comida do mundo eram ilustrados com Babette. Agora, lá vem o rato. E prefiro o Josimar ao vivo do que o rato. Fica registrada a queixa.
Acompanhamos o passeio à melhor baguete, em Montmartre, muito bom, e culminamos com Alain Passard que também falou, e bem, sobre a crítica construtiva e a necessidade dela. Está chegando a hora da comilança. Josimar vai comer uns risotinhos de legumes do Passard, mas de legumes mesmo, sem arroz. Todos cortados em quadradinhos e feitos como risoto. E um menu degustação no Ducasse, com seu célebre purê de couve-flor. Frango de Bresse com trufas, lagostins com caviar, enfim, o que há de mais fino, delicado, equilibrado e saboroso.
No fim, deu para entender que é um programa vivo e inteligente, que está delineando um personagem interessante, capaz de conversar com gregos e troianos e, além disso, saber comer. E o personagem é irônico, não fala da comida com a seriedade de quem vai salvar o Ocidente, mas sim de pratos, lugares e chefs que se esforçam para nos dar prazer. Tudo se encerrou com o crítico nu, na banheira de torneiras douradas do hotel. Uma gozação da dolce vita dos críticos gastronômicos.
ninahorta@uol.com.br
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