Um dia de fúria
Em sistema que divide alunos entre "vencedores" e "perdedores", Seung-hui deve ter sido invisível
MARQUEI UM PROGRAMA interessante para o próximo domingo. Vou à casa do meu mais antigo e querido amigo assistir a uma sessão dupla de cinema, com direito a pizza e debate depois de terminada a exibição.
Os filmes escolhidos são "Elefante", de Gus Van Sant, um drama seco com final trágico que se desenrola em uma "high school" norte-americana, e "Bang Bang, Você Morreu", telefilme extraído de uma peça de teatro, sobre um rapaz que tem tudo para terminar como o estudante Cho Seung-hui, que provocou a matança na Virginia Tech. Seu autor, William Mastrosimone, colocou o texto original da peça na internet, para que ele seja encenado no maior número de escolas possível.
Já assisti aos dois filmes e quero compartilhar com o nobre leitor de alguns argumentos que pretendo levar ao debate. Veja só: no ano passado, impressionou-me a pesquisa "Garis - um estudo de psicologia sobre invisibilidade pública", realizada pelo psicólogo Fernando Braga da Costa para a sua tese de mestrado.
Depois de ler sobre a experiência de Costa -que foi ser gari a fim de sentir na pele como as pessoas que realizam o trabalho de limpar as ruas são ignoradas, a ponto de se tornarem "invisíveis"-, passei a cumprimentar e a distribuir sorrisos a todo santo gari que vejo na rua.
Pois a primeira coisa que me veio em mente quando tomei conhecimento do tiroteio na Virgínia foi o estudo sobre os garis invisíveis. Lembro bem de gente como Cho Seung-hui nos meus tempos de escola. Estudei com um bom número de orientais extremamente aplicados e sei como os mais "nerds" e introvertidos eram ignorados pelos demais alunos. Imagino que Cho Seung-hui também fosse invisível no cruel sistema de ensino existente nos Estados Unidos, em que, desde muito cedo, crianças são divididas entre "winners" (vencedores) e "losers" (perdedores).
Qualquer um que já tenha assistido a um filme cujo tema é uma "high school" sabe do que estou falando. Se você é "popular", estará com a vida ganha. Mas se for pobre, feio, gordo, diferentão, ruim de esportes ou simplesmente tímido, correrá o sério risco de passar sua inteira carreira escolar sofrendo todo tipo de abuso e esculhambação.
Cho Seung-hui era esquisitão e travado. Socialmente, devia ser um zé ninguém. Dá para imaginar como tenha sido a vida escolar dele. Mas, talvez, o filho de tintureiros não teria alcançado a fama instantânea, se os EUA não tivessem leis tão vergonhosas sobre armas de fogo. Leis que nós resolvemos macaquear no referendo sobre a comercialização de armas e munições de 2005.
Pensando bem, talvez devesse propor a inclusão de mais um DVD na sessão de cinema de domingo. Acho que poderíamos assistir também a "O Júri" ("Runaway Jury"), com John Cusack, Rachel Weisz e Gene Hackman, aquele filme que fala sobre como o lobby das armas atua.
Quem sabe, se o pessoal da Virginia Tech tivesse feito o exercício que me proponho a fazer no domingo, eles agora não estariam debatendo sobre se devem ou não continuar a mencionar o nome de seu aluno mais inglório no jornal da universidade, que você pode acessar em: www.planetblacksburg.com.
barbara@uol.com.br
Em sistema que divide alunos entre "vencedores" e "perdedores", Seung-hui deve ter sido invisível
MARQUEI UM PROGRAMA interessante para o próximo domingo. Vou à casa do meu mais antigo e querido amigo assistir a uma sessão dupla de cinema, com direito a pizza e debate depois de terminada a exibição.
Os filmes escolhidos são "Elefante", de Gus Van Sant, um drama seco com final trágico que se desenrola em uma "high school" norte-americana, e "Bang Bang, Você Morreu", telefilme extraído de uma peça de teatro, sobre um rapaz que tem tudo para terminar como o estudante Cho Seung-hui, que provocou a matança na Virginia Tech. Seu autor, William Mastrosimone, colocou o texto original da peça na internet, para que ele seja encenado no maior número de escolas possível.
Já assisti aos dois filmes e quero compartilhar com o nobre leitor de alguns argumentos que pretendo levar ao debate. Veja só: no ano passado, impressionou-me a pesquisa "Garis - um estudo de psicologia sobre invisibilidade pública", realizada pelo psicólogo Fernando Braga da Costa para a sua tese de mestrado.
Depois de ler sobre a experiência de Costa -que foi ser gari a fim de sentir na pele como as pessoas que realizam o trabalho de limpar as ruas são ignoradas, a ponto de se tornarem "invisíveis"-, passei a cumprimentar e a distribuir sorrisos a todo santo gari que vejo na rua.
Pois a primeira coisa que me veio em mente quando tomei conhecimento do tiroteio na Virgínia foi o estudo sobre os garis invisíveis. Lembro bem de gente como Cho Seung-hui nos meus tempos de escola. Estudei com um bom número de orientais extremamente aplicados e sei como os mais "nerds" e introvertidos eram ignorados pelos demais alunos. Imagino que Cho Seung-hui também fosse invisível no cruel sistema de ensino existente nos Estados Unidos, em que, desde muito cedo, crianças são divididas entre "winners" (vencedores) e "losers" (perdedores).
Qualquer um que já tenha assistido a um filme cujo tema é uma "high school" sabe do que estou falando. Se você é "popular", estará com a vida ganha. Mas se for pobre, feio, gordo, diferentão, ruim de esportes ou simplesmente tímido, correrá o sério risco de passar sua inteira carreira escolar sofrendo todo tipo de abuso e esculhambação.
Cho Seung-hui era esquisitão e travado. Socialmente, devia ser um zé ninguém. Dá para imaginar como tenha sido a vida escolar dele. Mas, talvez, o filho de tintureiros não teria alcançado a fama instantânea, se os EUA não tivessem leis tão vergonhosas sobre armas de fogo. Leis que nós resolvemos macaquear no referendo sobre a comercialização de armas e munições de 2005.
Pensando bem, talvez devesse propor a inclusão de mais um DVD na sessão de cinema de domingo. Acho que poderíamos assistir também a "O Júri" ("Runaway Jury"), com John Cusack, Rachel Weisz e Gene Hackman, aquele filme que fala sobre como o lobby das armas atua.
Quem sabe, se o pessoal da Virginia Tech tivesse feito o exercício que me proponho a fazer no domingo, eles agora não estariam debatendo sobre se devem ou não continuar a mencionar o nome de seu aluno mais inglório no jornal da universidade, que você pode acessar em: www.planetblacksburg.com.
barbara@uol.com.br
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