+Marcelo Leite
Não creia em ateus nem crentes
Enfim, surge um ataque cerebral à voga de livros anti-religião
Comecei a ler com entusiasmo "I Don't Believe in Atheists" (não acredito em ateus), do jornalista Chris Hedges (Free Press, 212 págs., US$ 25,00). Até que enfim alguém se lançava num ataque cerebral à voga de best sellers anti-religião como "Deus, Um Delírio", de Richard Dawkins. Na metade do livro, já dosava a animação.
Não que a obra de Hedges não deva ser lida -ao contrário. Dificilmente será traduzida e publicada no Brasil, porém. Mesmo sendo Hedges um crente, ele não faz uma defesa das religiões. Portanto, não se encaixa na dicotomia "ciência x religião" que enquadra esse pseudodebate e sustenta a rentável estridência editorial.
O melhor de Hedges, que tem duas décadas como correspondente estrangeiro do diário "The New York Times", é sua indignação intelectual com Dawkins e companheiros mais radicais, como Christopher Hitchens e Sam Harris. O jornalista os acusa de simplificações grosseiras e de disfarçar como ataque à religião o que não passa de uma condenação rasteira a um credo particular, o islamismo.
Hedges conta que, num debate público com Harris, defendia a idéia de que a mola propulsora do fundamentalismo não era o Corão, mas o desespero pessoal e o desamparo econômico. Fatores históricos, portanto.
Harris fez troça. Disse que uma única pesquisa de opinião entre muçulmanos mostrando seu apoio a homens-bomba vale mais que anos de experiência direta da realidade nesses países vividos por jornalistas do "Times". O mediador, Robert Scheer, quase subiu na mesa.
Até um ateu pode identificar-se com as prédicas de Hedges por tolerância e pluralismo. Sua premissa é impecável: não existe um ponto de vista privilegiado do qual fala a voz da razão, árbitro do certo e do errado.
"Progresso científico e moral (...) não são a mesma coisa", escreve. "Qualquer forma de conhecimento que pretenda ser absoluta deixa de ser conhecimento."
"Um ateu que aceite uma natureza humana irredimível e falha, assim como um universo moralmente neutro, que não pense que o mundo possa ser aperfeiçoado por seres humanos, que não se escore em arrogância cultural e sentimentos de superioridade, que rejeite os projetos imperiais violentos para o Oriente Médio, é intelectualmente honesto."
Com coragem, Hedges mostra que aquela mentalidade contém o germe da loucura da razão. Uma longa linhagem de monstros, do Terror a Treblinka, do Gulag a Guantánamo. Não é fácil acompanhar Hedges, contudo, quando cita um antigo professor na Escola de Teologia de Harvard, James Luther Adams, para falar da "luxúria do conhecimento" como um dos tiranos da alma humana.
É bom e saudável denunciar como uma velha fantasia -sistematicamente negada pela realidade da história- a crença no progresso moral da espécie por meio da razão e da ciência. Mas também não dá para indiciá-las no crime de lesa-humanidade.
Dawkins não pode ser metido com facilidade no mesmo saco de Harris e Hitchens, verdadeiros ideólogos neoconservadores. Na generalização do ataque, Hedges termina sendo injusto com Dawkins -que aliás vai desaparecendo ao longo do livro.
Pode-se e deve-se renunciar à miragem iluminista do conhecimento total do mundo, mas isso não é um impedimento para mantê-lo como idéia reguladora no sentido kantiano: um objetivo a perseguir, ainda que por definição inatingível.
É esse passo que a fé de Hedges numa natureza humana pecaminosa o impede de dar.
MARCELO LEITE é autor de "Promessas do Genoma" (Editora Unesp, 2007) e de "Brasil, Paisagens Naturais - Espaço, Sociedade e Biodiversidade nos Grandes Biomas Brasileiros" (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia (cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br). E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br
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