Por uma Organização Mundial da Migração
A reunião entre representantes dos Ministérios das Relações Exteriores espanhol e brasileiro é importante, necessária e oportuna, mas ao fim e ao cabo estará longe de resolver o contencioso que ora protagonizam Brasil e Espanha. Em verdade será apenas o primeiro passo de uma jornada de dez mil quilômetros.
Ninguém acredita que o problema esteja circunscrito a meros episódios aduaneiros; senão que envolve toda uma política de estado da União Européia, em relação às migrações, e por isto tende a se protrair no tempo.
As relações entre Brasil e Espanha sempre se situaram, numa escala de valores, entre muito boas e excelentes. Afinidades culturais e laços históricos; a latinidade; o fato de sermos ibéricos; o “ethos” caloroso; a loucura pelo futebol, tudo enfim conspira em favor de uma parceria e uma solidariedade jamais desmentidas.
Por outro lado, as inversões espanholas no Brasil são consideráveis: telefonia, eletricidade, hotelaria, construção de estradas, finanças e “banking”. Não haveria, portanto, qualquer interesse no surgimento do conflito; como não há qualquer vantagem para os dois países em manter a corda tensionada.
Ocorre que a Espanha não está agindo sozinha. Ela atende a protocolos estabelecidos e acordos multilaterais, envolvendo a União Européia, entre os quais a definição do Espaço Shengen e a criação da Frontex, como braço operacional da política de fronteiras.
Ora, verifica-se que a fronteira espanhola é a mais permeável ou a mais porosa ao longo do perímetro Shengen e tornou-se a principal porta de entrada para imigrantes africanos, sul-americanos (sobretudo brasileiros, bolivianos e paraguaios), além dos egressos do leste europeu.
Isto requer mais controle, vigilância, atenção e, por suposto, mais pressão das autoridades européias. Prova disto é o embargo a passageiros brasileiros cuja destinação final não era a Espanha e estavam em Barajas apenas para uma conexão aérea.
Este episódio leva a nossa especulação um pouco mais adiante. Se o endurecimento é reflexo de uma atitude generalizada da UE em relação às imigrações, há que se questionar esta atitude e aprofundar a discussão e envolver outras expressões de vontade e poder nacionais, a começar pelas bases da sociedade, passando pela representação política, até chegar às conferências de cúpula.
Em primeiro lugar, reconheça-se que é legítima a posição da UE no que tange à proteção de suas fronteiras, particularmente quando se atenta para o perigo crescente do terrorismo e do tráfico de drogas. Mas há que se separar o joio do trigo e distinguir elementos daquela natureza de idiossincrasias mais superficiais, ou claramente preconceituosas, como a discriminação étnica, o chauvinismo laboral e o purismo sexual, ou seja, a perquirição do sexualmente correto.
Diga-se de passagem que a intolerância racial não é nova. “Migrantes” europeus no século XVI, os chamados “colonizadores”, fizeram faxinas étnicas monumentais na América do Sul, em guerras de extermínio sem tréguas, às populações locais e depois institucionalizaram a escravidão para preencher o vazio de mão-de-obra. Num certo sentido o quadro atual é mais ameno.
Por outro lado, aquela mesma América abriu-se sem reservas a grandes contingentes de europeus que para lá se trasladaram no final do século XIX e começo do século XX, em busca de realizar um projeto de vida. O chauvinismo laboral de hoje que se ocupa em preservar os postos de trabalho para os nativos do país, não tem fundamento; e chega a ser um paradoxo, agora, que as novas tecnologias promoveram uma divisão internacional do trabalho, consignando aos pobres as atividades primárias ou de baixa qualificação, em geral recusadas pelos “locais” no primeiro mundo.
Por fim, a suspeita recorrente de que pessoas desacompanhadas integram alguma rede de prostituição ou são travestis, a depender do gênero, só faz lembrar o turismo sexual massivo praticado por europeus em praias do nordeste brasileiro (que as autoridades locais não conseguem coibir), e que a maioria dos aliciadores e traficantes que articulam aquelas redes são europeus de origem – espanhóis inclusive.
Pretende-se com isso que a Europa seja invadida por uma horda de bárbaros? Ou que os seus gerânios sejam pisoteados sem piedade? De maneira alguma. Pretende-se tão somente que se estabeleçam os limites do possível. Em regras claras, inteligíveis, pelo mundo inteiro e homologadas em algum fórum mundial, com a participação dos países líderes no turismo emissor e/ou exportadores de mão-de-obra.
Uma discussão objetiva deve permear a sociedade civil comprometendo entidades de classe, grupos de pressão e organizações não governamentais. Iniciativas devem ser tomadas pelos parlamentos – e neste sentido advogo desde já a abertura de um diálogo entre o Congresso Nacional do Brasil e as Cortes Espanholas e, eventualmente, o Parlamento Europeu.
A intensificação do fenômeno migratório é conseqüência irrecorrível dos avanços em telecomunicações e transportes, que nos reduziram a esta aldeia global, que foi prevista com absoluta nitidez desde o início dos anos sessenta, sem que todavia o mundo esteja preparado para ela. Não existe um organismo aplicado ao monitoramento do fluxo de pessoas, como existe para o fluxo de mercadorias ou de ativos financeiros. E, no entanto, esta tríade é interdependente – condições mais justas no comércio internacional reduziriam, com certeza, o volume das migrações.
Nada obstante, o “framewok” institucional hoje existente, em escala planetária, comporta e enquadra perfeitamente o fenômeno migratório com todas as suas variáveis, permitindo inclusive a sua expansão, sem maiores desconfortos.
Todo o desafio está em sistematizar tais variáveis e secularizar os resultados em um códice isento e respeitável, e, por isso mesmo, prático. Um trabalho árduo sem dúvida, onde a palavra-chave é cooperação. Neste sentido, pela importância dos atores, o encontro desta terça-feira em Madrid, vale como uma convocatória e carrega-se, no mínimo, de larga exemplaridade.
Marcondes Gadelha é deputado federal pelo PSB da Paraíba e presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CREDN) da Câmara dos Deputados.
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